A Constituição Federal de 1988 definiu a segurança como um direito social a ser concretizado pelo Estado e ressalta sua condição de autêntico direito fundamental. E, ao caracterizar a segurança pública como “direito e responsabilidade de todos”, a Carta Política consagra o princípio democrático, consequência dos arranjos institucionais que permitem a participação popular na formulação e no controle da gestão das políticas de segurança. É o que ocorre, por exemplo, na aplicação da doutrina de policiamento comunitário ou nos conselhos de segurança pública.
Continua o texto constitucional destacando quea segurançaé exercida para a preservação da ordem pública e da integridade das pessoas e do patrimônio. Confere às polícias militares[i] o dever de atuar no policiamento ostensivo e na preservação da ordem pública. Enquanto as polícias civis[ii] exercem as funções de polícia judiciária e apuram as infrações penais, exceto as infrações militares, em seus respectivos estados. Assim, enquanto o crime não ocorre, cabe à Polícia Militar realizar a prevenção. Por outro lado, caso ocorra, a apuração do delito cabe à Polícia Civil.
E foi além, para evitar que a investigação policial fosse contaminada por aventureiros ou desqualificados, o constituinte previu que as polícias civis fossem dirigidas por delegados de polícia de carreira[iii]. Consta dos anais do Supremo Tribunal Federal que o delegado de polícia é o “primeiro garantidor da legalidade e da justiça”[iv]. A frase tornou-se um símbolo que bem representa a atual busca por valorização e legitimidade da carreira de Delegado de Polícia[v]. É que ao Delegado de Polícia, na qualidade de autoridade policial, cabe a condução da investigação criminal por meio de Inquérito Policial ou outro procedimento previsto em lei, que tenha como objetivo a apuração das circunstâncias, da materialidade e da autoria das infrações penais, atuando de acordo com seu livre convencimento técnico-jurídico, com isenção e imparcialidade[vi].
Inspirada no princípio democrático, a lei prevê que: “Qualquer pessoa do povo que tiver conhecimento da existência de infração penal em que caiba ação pública poderá, verbalmente ou por escrito, comunicá-la à autoridade policial[vii]”. Essa comunicação é chamada pela doutrina clássica de notitia criminis (notícia crime)de cognição indireta ou mediata, pois decorre de outras pessoas. Seria o meio pelo qual em regra a autoridade policial toma conhecimento do possível fato delituoso e, consequentemente, instaura o inquérito.
São outras espécies de notitia criminis a de cognição direta ou imediata e a de cognição coercitiva. A notitia criminis de cognição direta ou imediata ocorre quando o delegado de polícia toma conhecimento do fato por meios corriqueiros, como jornais, informação da polícia preventiva – Polícia Militar, etc. Entendemos por notitia criminis de cognição coercitiva, quando o delegado de polícia toma conhecimento do crime através da apresentação de quem acabou ser preso em flagrante.
Voltando a notícia crimede cognição indireta ou mediata, a principal forma de materialização dela é o Boletim de Ocorrência, que é um documento escrito, prático e objetivo, lavrado por Escrivão de Polícia, Agente de Polícia ou eventualmente por servidor administrativo, sob orientação e supervisão do Delegado de Polícia[viii]. O Boletim de Ocorrência deverá conter diversos dados, como a qualificação completa do comunicante e da(s) vítima(s); e todos os disponíveis sobre o autor dos fatos ou sua descrição física, bem como, a descrição dos fatos[ix].
No primeiro momento, o Boletim de Ocorrência tem por objetivo o registro público de fatos de natureza criminal. Possui natureza jurídica de declaração unilateral em que, em tese, tem como declarante a vítima de um crime ou de uma contravenção penal. Não se destina a “preservar direitos”, mas sim de registro de fatos de interesse policial. Tal documento não possui presunção relativa de veracidade, haja vista que os fatos narrados serão apurados em sede de verificação preliminar de informação ou em inquérito policial[x][xi].
Nos casos de crimes cuja ação penal seja de iniciativa pública condicionada à representação ou de iniciativa privada, o Delegado de Polícia não exigirá a apresentação do instrumento formal respectivo, devendo este ser formalizado na própria Delegacia, no Boletim de Ocorrência, contendo informações suficientes para que a vítima e/ou seu representante legal manifestem, de forma inequívoca, sua intenção de ver apurada a infração penal noticiada[xii]. Nos crimes de natureza privada, a vítima e/ou seu representante legal será orientada do prazo que dispõe para formalizar sua pretensão em Juízo, devendo tal conhecimento ser devidamente registrado no Boletim de Ocorrência ou Termo de Declarações[xiii].
O Boletim de Ocorrência não criminal é permitido. Mesmo que sem interesse policial e da investigação criminal, é inerente ao cargo de Delegado de Polícia a proteção de direitos fundamentais. Assim podem ser registrados fatos não afetos à Polícia Civil. São os chamados os Boletins Sociais. É o caso de “Perda e extravio de documentos” ou de objetos. É uma manifestação de proteção da autoridade policial. Realizando-a por meio formal, registrando a demanda daquele que bate às portas de uma Delegacia de Polícia. O registro de boletim social não é a única manifestação da proteção realizada na Delegacia de Polícia. Outro exemplo, seria de forma informal, é o aconselhamento jurídico.
Outra utilização do famoso B.O. é no caso da não autuação em flagrante. O Delegado de Polícia deverá, no Auto de Prisão em Flagrante, por meio de despacho proferido após as oitivas, fundamentar os motivos que o levaram à ratificação da prisão em flagrante efetuada pelo condutor, bem como à tipificação da conduta do autuado, além de determinar as providências pertinentes[xiv]. Caso não resulte fundada suspeita de cometimento de crime em flagrante delito contra o conduzido, o Delegado de Polícia mandará lavrar boletim de ocorrência narrando todo o ocorrido e, mediante despacho fundamentado, colocará o conduzido em liberdade, após proceder as oitivas necessárias[xv].
Assim, o Boletim de Ocorrência se constitui em verdadeiro canal de comunicação entre o cidadão e o Delegado de Polícia, como primeiro garantidor da legalidade e da justiça, consagrando o princípio democrático, seja esse conteúdo de interesse policial ou não, visando o exercício das funções de polícia judiciária e apuração das infrações penais ou, no viés social, para o exercício da cidadania.
Evaldo de Oliveira Gomes, é especialista em Ciências Criminais e em Gestão de Segurança Pública, Delegado de Polícia, Classe Especial, Polícia Civil do Tocantins, atua na 5ª Delegacia de Polícia Civil, em Palmas.
[i]§ 5º, artigo 144, Constituição Federal de 1988.
[ii]§ 4º, artigo 144, Constituição Federal de 1988.
[iii]§ 4º, artigo 144, Constituição Federal de 1988.
[iv]Ministro Celso de Melo, STF, HC 84548/SP. Rel. Ministro Marco Aurélio. Julgado em 21/6/2012.
[v]DELEGADO DE POLÍCIA, O PRIMEIRO GARANTIDOR DE DIREITOS FUNDAMENTAIS! MAS QUEM GARANTE OS DIREITOS DO GARANTIDOR?, Acesso em 09/04/2018. Disponível em: https://www.flickr.com/photos/
[vi]Art. 1º, caput, da Instrução Normativa SSP N° 003, de 18 de agosto de 2016, Manual de Procedimentos de Polícia Judiciária da Polícia Civil do Estado do Tocantins.
[vii]§ 3º do art. 5º do Código de Processo Penal.
[viii]Art. 2º, parágrafo único, da Instrução Normativa SSP N° 003, de 18 de agosto de 2016, Manual de Procedimentos de Polícia Judiciária da Polícia Civil do Estado do Tocantins.
[ix]Art. 2º caput, da Instrução Normativa SSP N° 003, de 18 de agosto de 2016, Manual de Procedimentos de Polícia Judiciária da Polícia Civil do Estado do Tocantins.
[x]"O boletim de ocorrência não goza de presunção “juris tantum” de veracidade das informações, posto que apenas consigna as declarações colhidas unilateralmente pelos interessados, sem atestar que tais relatos sejam verdadeiros" (AgRg no Ag 795.097/SC, Relator o Ministro HÉLIO QUAGLIA BARBOSA, DJ de 20/8/2007).
[xi]"O boletim de ocorrência não goza de presunção “juris tantum” de veracidade das informações, posto que apenas consigna as declarações colhidas unilateralmente pelos interessados, sem atestar que tais relatos sejam verdadeiros" (AgRg no Ag 795.097/SC, Relator o Ministro HÉLIO QUAGLIA BARBOSA, DJ de 20/8/2007).
[xii]Art. 3º, caput, da Instrução Normativa SSP N° 003, de 18 de agosto de 2016, Manual de Procedimentos de Polícia Judiciária da Polícia Civil do Estado do Tocantins.
[xiii]Art. 3º, Parágrafo único, Manual de Procedimentos de Polícia Judiciária da Polícia Civil do Estado do Tocantins.
[xiv]Art. 109, § 4°, do Manual de Procedimentos de Polícia Judiciária da Polícia Civil do Estado do Tocantins.
[xv]Art. 109, § 5°, do Manual de Procedimentos de Polícia Judiciária da Polícia Civil do Estado do Tocantins.