Sistema de investigação criminal norte-americano versus inquérito policial

Por Delegado Antonio Onofre Oliveira da Silva Filho
02/08/2019 02/08/2019 14:21 3246 visualizações

Entre os sistemas de investigação criminal adotados ao redor do mundo, quando em comparação com o Inquérito Policial brasileiro, chama a atenção a forma do discurso falacioso de que a polícia norte-americana, por ser de carreira única e não possuir a figura do delegado de polícia, seria mais eficiente que o trabalho investigativo criminal em nosso país, devido ao modelo adotado.

Cumpre destacar que nos EUA, pelo fato de haver uma organização diferente para cada estado americano, o modelo policial varia a depender da organização de cada um, motivo pelo qual não é possível esgotar no presente artigo todas as características da polícia americana. Todavia, salienta-se que existe uma grande diferença entre os modelos de investigação: que nos EUA não somente a polícia uniformizada ou velada pode realizar investigações criminais, mas também agências de investigação, como o FBI, DEA, IRS (espécie de Receita Federal americana), entre outros órgãos administrativos.

Quanto à natureza da investigação, a polícia norte-americana possui características do Promotor-Investigador, onde os investigadores, policiais ou não, apresentam suas conclusões ao gabinete de um promotor do seu distrito, o qual analisará o caso, e verificando a existência da Probable Cause (Causa Provável), a partir das provas analisadas, as apresentará a um júri, a fim de que este vote em alguma proposta de acusação criminal, chamada de indiciamento.

Tendo em vista que o direito americano é baseado no Common Law (Lei Comum), bem como na justiça negocial, basicamente, as investigações criminais giram em torno de números de acusação pelo parquet, o qual poderá propor aos suspeitos o instituto do plea bargain ou plea deal, espécie de um “mecanismo pelo qual o acusado pode, logo no início das apurações pré-processuais, reconhecer a responsabilidade pelo fato, abrindo mão de seu direito a um processo e ao consequente julgamento judicial de mérito para receber, desde logo, uma pena” (Dotti e Scandelari. 2019)

Diferente do sistema brasileiro, no qual existe capacidade postulatória policial, por intermédio do Delegado de Polícia, as polícias americanas dependem do órgão ministerial para representar judicialmente a produção de alguns meios de prova (interceptações telefônicas, buscas, prisões, etc).

Contudo, em alguns estados americanos, a polícia pode prender indivíduo suspeito da prática de crime por até 48 horas, sem estar em flagrante delito, apenas por conveniência da investigação criminal, a fim de buscar causa provável de autoria contra o sujeito. Ao término do prazo, caso não haja elementos para a acusação, a polícia deve liberá-lo.

Apesar de tal permissividade não encontrar correspondência no modelo nacional, também não confere superioridade nas investigações do modelo norte-americano, o qual, mesmo possuindo capacidade para deliberar sobre restrições temporárias à liberdade ambulatorial, não possuem dados estatísticos de resolução de crimes superiores aos dados brasileiros.

Como brilhantemente conclui o magistério de Franco Perazzoni e Wellington Clay Porcino Silva, no artigo, Inquérito Policial: um instrumento eficiente e indispensável à investigação, “as taxas de elucidação de crimes, sobretudo homicídios, independem do modelo adotado, variando, bastante, até mesmo dentro de um mesmo país”. No aludido texto, são apresentados dados estatísticos de resolução de crimes nos EUA e Brasil, onde é possível perceber que a análise e interpretação realizada pelos doutos professores faz todo o sentido quando se comparam os índices americanos e brasileiros.

Por exemplo, dados do UCR/FBI apontam que a taxa de solução de crimes (homicídios) em todo os EUA, durante os anos de 2000 a 2013, é de 57,33% dos casos. Na cidade de Nova Iorque é de 38,88%. No Brasil, dados das investigações da PCDF apontam que o número de elucidação de crimes durante os anos de 2003 a 2007 foram de 69%, e no ano de 2015 chegaram à incrível marca de 90% de solução.

Claro que existem estados norte-americanos que também apresentam altos índices, e brasileiros com índices baixos de elucidação, porém, tal circunstância é determinada por problemas relacionados ao aumento incontrolável do tráfico de drogas, da pobreza e da violência urbana, da falta de investimentos em políticas de segurança, entre outros, variando de acordo com a estrutura proporcionada à polícia investigativa do que o modelo adotado.

No tocante ao respeito e garantias fundamentais, percebe-se que o inquérito policial brasileiro atende aos ditames do Estado Democrático de Direito, ao passo que uma autoridade legalmente constituída, a qual não pertence nem à acusação nem à defesa, cuja atividade se restringe às investigações criminais, dotada de imparcialidade, conduz os trabalhos investigativos.

Como dito anteriormente, na investigação americana, por não existir a figura de um integrante das carreiras policiais responsável por postular junto ao poder judiciário medidas de restrição aos direitos fundamentais, deixando a cargo apenas do ministério público, se caracteriza como um instrumento mais inquisitivo do que o inquérito policial, uma vez que pelo fato do promotor público participar ativamente das investigações e ainda da ação penal, coloca o órgão acusador em situação de superioridade à defesa, visando tão somente acusações, em detrimento até mesmo da inocência, como pode ser verificado pelo instituto do plea bargain.

plea deal estadunidense apresenta diversas críticas, entre as quais: sendo o réu pobre, este não teria condições de arcar com os custos de um bom acordo; o promotor pode ameaçar o suspeito com acusações desproporcionais a fim de aceitar um acordo ruim ou mesmo declarar-se culpado para não sofrer uma suposta punição mais grave. Ademais, este instituto afasta o princípio da Inafastabilidade da Jurisdição, quando não dependem de autorização judicial para sua realização.

A faculdade conferida ao Ministério Público americano, em "negociar" o oferecimento da ação penal com os investigados/acusados, sem o crivo do contraditório judicial, viola mortalmente o princípio do Contraditório e Ampla Defesa, gerando desequilíbrio processual e ofensa ao princípio da Paridade de Armas. Quando o órgão responsável por postular judicialmente durante as investigações e apresentar ação penal se confundem, gera grave afronta ao sistema acusatório, tendo em vista a não diferenciação do Estado Investigador com o Estado-Acusador.

O inquérito policial brasileiro, apesar de ser considerado pela doutrina como inquisitorial, guarda maior proteção aos direitos e garantias fundamentais que a investigação estadunidense, onde é possível notar que o sistema de investigação criminal do Brasil confere maior participação da defesa, como o direito em requerer a realização de diligências durante o trâmite do IP (art. 14 do CPP), bem como a declaração de nulidade das provas e/ou elementos informativos coligidos que são derivados de interrogatório/oitiva de suspeitos sem a assistência de advogado devidamente constituído pelo cliente (GOMES, Rodrigo Carneiro. 2017).

Ademais, diferentemente do inquérito, o qual é dotado de maior cerimônia e formalidade para a prática de alguns atos apuratórios, como é o caso do despacho de juntada de documentos, oitivas, representações judiciais, etc, onde deve ser apenas por escrito, a investigação norte-americana possui uma maior informalidade de seus atos, onde por vezes é juntado em um compilado só tudo aquilo que interesse à investigação, ressalvadas as restrições aos direitos fundamentais (prisões, buscas, interceptações telefônicas, entre outros), via de regra, prescindindo, inclusive, de formalidades para representações junto ao poder judiciário, podendo ser, dada as peculiaridades de cada caso, verbais.

Conforme o exposto, devido a investigação policial estadunidense ser baseada no sistema do promotor-investigador, ela atua de forma parcial, acentuando desigualdade entre as futuras partes processuais, figurando a defesa numa posição desfavorável durante o curso da ação penal. Destaca-se também que essa atuação parcial, visando acusações, não retrata uma maior taxa de elucidação, como visto acima.

Percebe-se então que o discurso de superioridade da polícia norte-americana face à polícia judiciária brasileira, em razão de apontar o inquérito policial como ineficaz, não passa de mera retórica falaciosa com o intuito meramente de desqualificar as polícias civis e federais, notadamente ao cargo de delegado de polícia, o qual, por não ser parte durante a instrução judicial, não possui interesse nenhum em ver alguém condenado ou inocente, dada a sua imparcialidade durante o exercício funcional, tão somente se limitando a presidir investigações criminais, visando o esclarecimento dos fatos que chegam ao seu conhecimento.

 

REFERÊNCIAS

DOTTI, René Ariel. SCANDELARI, Gustavo B. Acordos de não persecução e de aplicação imediata de pena: o plea bargain brasileiro. Boletim do Instituto Brasileiro de iências Criminais. EDIÇÃO ESPECIAL - ABRIL/2019 - ISSN 1676-366.

GOMES, Rodrigo Carneiro. Lei 13.245/2016: Atuação do Advogado no Inquérito Policial. Investigação Criminal pela Polícia Judiciária. pág. 174 a 186. 2ª ed. Lumem Juris. Rio de Janeiro. 2017; https://ead.dpf.gov.br/anpnet/mod/forum/discuss.php?d=23380 <acesso em 18/07/2019>;

PERAZZONI, Franco. SILVA, Wellington C. P. Inquérito Policial: um instrumento eficiente e indispensável à investigação. Revista Brasileira de Ciências Policiais.v. 6, n. 2, p. 77-115, Edição Especial. ISSN 2178-0013. ISSN Eletrônico 2318-6917. Brasília. 2015.

 

ANTONIO ONOFRE OLIVEIRA DA SILVA FILHO

É Delegado de Polícia Civil do Tocantins, titular da delegacia de Araguacema, responsável pelo expediente de Caseara. Pós-graduando em Direito de Polícia Judiciária pela Academia Nacional de Polícia - Polícia Federal.